Dogma é um princípio fundamental estabelecido em uma doutrina, do qual se desenvolvem ideias práticas, podendo essa doutrina ser de caráter religioso, filosófico, científico, político, etc. No conceito tradicional de religião, o dogma é uma espécie de verdade, naturalmente revelada por uma divindade ou um enviado especial seu, pelo que essa verdade é recebida como algo sagrado e, por conseguinte, uma ideia absoluta, perfeita, inquestionável e que deve ser admitida em sua integridade. Em Filosofia e ciências afins, trata-se de um conceito elementar para formar um conjunto de ideias necessariamente examinado pelo critério da razão e, ou, da experimentação, de maneira que seja tão consistente e evidente sua conceituação, isenta de qualquer contradição ou dúvida, ao ponto de ser postulada como um preceito válido para toda e qualquer circunstância, enquanto não seja refutada.
O termo origina-se do grego dógma (δόγμα), equivalente a “o que nos parece bom”, depois adaptado ao latim com a significação de “preceito”, “decisão”, “decreto”, popularizado especialmente na Idade Média pelas composições teológicas da Igreja Católica para justificar, por exemplos, o dogma da santíssima trindade, a virgindade de Maria, eucaristia, infalibilidade do papa, etc.
A forma intransigente como a tradição católica defendeu os seus dogmas implicou em esse termo acabar ganhando uma conotação pejorativa. Exemplo disso encontramos na crítica do filósofo Bertrand Russell: "Muitos sistemas educacionais consistem em incutir dogmas infundados ao invés do espírito da investigação". Essa prática arrogante de oferecer suas verdades é chamada de dogmatismo. Sobre isso, o filósofo Alemão Immanuel Kant expressa: “Dogmatismo é a crença equivocada na capacidade do espírito humano para a elaboração de sistemas de pensamento que dispensam o movimento reflexivo da crítica, isto é, o debruçar-se da razão sobre si mesma na busca de seus limites e ilusões”.
Apesar disso, não é raro filósofos e cientistas fazerem uso desta palavra para expressar a ideia de um axioma, preceito, máxima, baseando-se naquela ideia de um conceito racionalmente analisado, evidenciado pela experiência e desprovido da sacralidade admitida no âmbito religioso. A filosofia Estoicismo, por exemplo, oferece um conjunto de dogmas para caracterizar sua doutrina, tal esse célebre conceito: “o único bem é o bem moral, e o único mal é o mal moral".
No âmbito científico, o físico americano Thomas S. Kuhn (1922-1996) discorreu bem a respeito desse termo no seu ensaio “A Função do Dogma na Investigação Científica” (The Function of Dogma in Scientific Research), publicado originalmente em 1963, na coletânea Scientific Change organizada por A. C. Crombie. Prefaciando a versão traduzida desta obra, Eduardo Salles O. Barra vai dizer que “reconheceremos que os dogmas são tão indispensáveis à ciência quanto são, por exemplo, os seus métodos de medir e de quantificar os acontecimentos no mundo. Isso significa que uma certa dose de dogmatismo — isto é, de crenças das quais não desejamos abrir mão com facilidade — é ‘uma característica funcional e um fato inerente ao desenvolvimento científico maduro’.” Daí, Kuhn discorre, justificando que a ciência trabalha fundamentalmente a partir de dogmas:
“Os cientistas são treinados para funcionar como solucionadores de quebra-cabeças dentro de regras estabelecidas, mas são também ensinados a considerar-se eles próprios como exploradores e inventores que não conhecem outras regras além das ditadas pela natureza."
A Função do Dogma na Investigação Científica, Thomas Kuhn
Embora possa parecer estranho, e até mesmo improvável para os menos familiarizados com a codificação do Espiritismo, Allan Kardec fez uso do termo dogma em sua obra doutrinária, correspondendo à aplicação clássica dos filósofos e cientistas. Por isso, antes de verificarmos as passagens do codificador espírita contendo o referido termo, é interessante evocarmos a análise feita pelo filósofo espírita Herculano Pires:
"No Espiritismo, como em todas as doutrinas filosóficas, existem dogmas de razão, como o da existência de Deus, o da reencarnação, o da comunicabilidade dos Espíritos após a morte. Muitos adeptos estranham a presença dessa palavra nos textos de uma doutrina que se afirma antidogmática, aberta ao livre exame de todos os seus princípios. São pessoas ainda apegadas ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma razão para essa estranheza, como já vimos, do ponto de vista cultural."
Herculano Pires, Agonia das Religiões - cap. III
Considerada essa explicação, vamos anotar Kardec reconhecendo a Lei de Reencarnação como um dogma em várias partes de O Livro dos Espíritos, dentre as quais, neste trecho:
"Portanto, ensinando o dogma da pluralidade das existências corporais, os Espíritos renovam uma doutrina que teve origem nas primeiras idades do mundo e que se conservou no íntimo de muitas pessoas, até aos nossos dias. Eles simplesmente a apresentam de um ponto de vista mais racional, mais de acordo com as leis progressivas da Natureza e mais de conformidade com a sabedoria do Criador, livrando-a de todos os acessórios da superstição."
Allan Kardec, O Livro dos Espíritos - questão 222
Citações semelhantes podem ser encontradas na coleção da Revista Espírita, assim como no recorte a seguir de uma dissertação mediúnica recebida na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:
“O dogma da reencarnação indefinida encontra oposições no coração do encarnado que ama, porque, em presença dessa infinidade de existências, produzindo laços em cada uma delas, ele se pergunta com espanto em que se tornam as afeições particulares, e se elas não se fundem num único amor geral, o que destruiria a persistência da afeição individual."
Allan Kardec, Revista Espírita – fev. de 1864: “Dissertações espíritas”
Importante também não confundir quando Kardec trata dos dogmas católicos, neste caso, justamente para refutar a interpretação da igreja, por exemplo, o dogma das penas eternas:
"Até aqui, só temos combatido o dogma das penas eternas com o raciocínio. Demonstremo-lo agora em contradição com os fatos positivos que observamos, provando-lhe a impossibilidade."
Allan Kardec, O Céu e o Inferno - 1ª parte, cap. VI, item 18
É notório, pois, a perfeita distinção que Allan Kardec faz do dogma conforme a tradição da igreja e o dogma filosófico e científico; ele próprio também vai acentuar a consequência dessa tradição: a fé cega e o fanatismo:
"Do ponto de vista religioso, a fé consiste na crença em dogmas especiais que formam as diferentes religiões. Todas elas têm seus conceitos de fé. Sob esse aspecto, a fé pode ser raciocinada ou cega. Nada examinando, a fé cega aceita sem verificação tanto o verdadeiro como o falso, e a cada passo se choca com a evidência e a razão. Quando é levada ao excesso, ela produz o fanatismo. Apoiando-se no erro, cedo ou tarde ela desmorona; somente a fé que se baseia na verdade garante o futuro, porque nada tem a temer do progresso do conhecimento, dado que o que é verdadeiro na obscuridade, também é o mesmo diante da luz. Cada religião pretende ter a posse exclusiva da verdade; indicar a alguém a fé cega sobre um ponto de crença é confessar-se impotente para demonstrar que está com a razão.
Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo - cap. XIX, item 6 e 7
(...)
"A fé cega já não é deste século, tanto assim que o dogma da fé cega é principalmente o que produz hoje o maior número dos ateus, porque ela pretende se impor, exigindo a renúncia de um dos mais preciosos direitos do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio."
E em resposta a essa tradição, Kardec apresenta o Espiritismo e seu modelo de fé:
"Já a fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, não deixa nenhuma obscuridade. A criatura então crê pois tem certeza e tem certeza exatamente porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só é aquela que pode encarar a razão de frente, em todas as épocas da Humanidade. O Espiritismo conduz a esse resultado, pelo que triunfa da descrença, sempre que não encontra oposição sistemática e interessada."
Idem - cap. XIX, item 7
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